
A outra face do patrimônio: a necessidade da preservação nas cidades históricas esquecidas de Minas Gerais

Ricardo Nicolau Dias
Minas Gerais é, por excelência, um território da memória. Suas cidades coloniais, com casarios alinhados nas encostas, igrejas monumentais e becos sinuosos, compõem uma paisagem que se tornou símbolo da história brasileira. Congonhas, Ouro Preto, Diamantina, São João del-Rei e Mariana — nomes amplamente reconhecidos e, em alguns casos, elevados à condição de Patrimônio Cultural da Humanidade – são evidências belíssimas desse simbolismo. No entanto, há uma outra face nesse vasto acervo histórico: um conjunto expressivo de cidades e vilas que, embora detenham elementos de grande relevância arquitetônica, urbanística e cultural, permanecem à margem dos olhares institucionais e acadêmicos.
Essas localidades formam uma rede de centros urbanos que não se inserem no circuito tradicional de proteção federal. São cidades como Prados, Serro, Sabará, Pitangui, Catas Altas, Caeté e Santa Luzia. Todas elas guardam edificações coloniais, traçados urbanos preservados e práticas culturais que dialogam diretamente com os grandes centros tombados, mas que, por múltiplos fatores — descentralização dos recursos de preservação, invisibilidade midiática e a falta de ações articuladas entre os níveis de governo — permanecem em situação de vulnerabilidade.
Prados, por exemplo, localizada no Campo das Vertentes, é uma joia esquecida nas montanhas mineiras. Sua história remonta ao século XVIII, abriga um dos conjuntos arquitetônicos mais significativos do interior de Minas. Suas igrejas, como a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, e os casarões em adobe e taipa de pilão contam muito sobre a vida cotidiana do período colonial, mas não gozam do mesmo aparato de proteção e visibilidade que Ouro Preto ou a vizinha Tiradentes, por exemplo.
Sabará, ainda que com seu centro histórico tombado, sofre há décadas com a descaracterização de seu entorno, o que é revelador de uma política patrimonial seletiva e fragmentada. A belíssima Igreja de Nossa Senhora do Ó, um raro exemplo de arquitetura religiosa em madeira e taipa, corre risco de deterioração, não apenas física, mas também simbólica, à medida que a cidade cresce de maneira desordenada ao seu redor.
É preciso reconhecer que a centralização dos esforços de preservação em determinados polos, ainda que justificável pela densidade patrimonial dessas cidades e pelo fomento turístico, produz efeitos colaterais que aprofundam desigualdades regionais. A exclusividade dos recursos, da visibilidade e das políticas públicas contribui para a descontinuidade da memória em outras localidades que também participaram ativamente da formação social, econômica e cultural de Minas Gerais.
Neste contexto, o papel da universidade — e, em especial, dos cursos de Arquitetura e Urbanismo, História, Geografia e Ciências Sociais — torna-se fundamental. A academia precisa ampliar seu campo de interesse e pesquisa, superando a visão monumentalista do patrimônio. A valorização da “história menor”, das manifestações do cotidiano, das formas populares de construção e organização dos espaços urbanos, é um caminho necessário para democratizar o entendimento do patrimônio.
A pesquisa acadêmica pode, por exemplo, revelar a complexidade de cidades como Pitangui, uma das primeiras povoações do ciclo do ouro, que hoje se vê comprometida por construções e novas ocupações do tecido urbano sem um plano concreto e confiável de salvaguarda ou sequer um inventário sistemático de seus bens. Pode também impulsionar ações de educação patrimonial em cidades como Catas Altas e Entre Rios de Minas, promovendo o reconhecimento local da importância de seus próprios acervos.
Mais que um exercício técnico, preservar é um ato político. E como tal, exige que o campo da preservação se volte para além do barroco oficial e das cidades “postais” do turismo cultural. Exige escuta, articulação com as comunidades locais, valorização dos saberes tradicionais e, sobretudo, um comprometimento ético com a pluralidade das memórias que compõem nosso território.
O que está em jogo, ao fim e ao cabo, não é apenas a conservação de um conjunto de edificações antigas, mas sim a permanência de uma história que, se não for contada e cuidada, será apagada pelas dinâmicas do mercado e da negligência pública. Cada cidade esquecida carrega um pedaço de Brasil que insiste em existir, mesmo sem verbas, sem editais, sem fomentos e sem tombamentos.
É hora de reequilibrar a balança da atenção patrimonial em Minas Gerais. Para isso, precisamos formar novos profissionais conscientes dessa desigualdade, fomentar políticas públicas descentralizadas e, acima de tudo, reconhecer que o valor do patrimônio não se mede apenas pela imponência de suas fachadas, mas pela densidade das vidas que moldaram — e ainda moldam — seus muros e ruas.
A história de Minas é escrita também por suas cidades silenciosas. Cabe a nós, arquitetos, urbanistas, professores e estudantes, ouvi-las com atenção e agir em sua defesa.